Reflexões Sobre a Leitura Popular da Bíblia



Marcos Aurélio dos Santos 

Ler a Bíblia é Escutar Deus em Comunidade: Um Chamado à Hermenêutica Libertadora

Ler a Bíblia é, antes de tudo, escutar Deus em comunidade. Por isso, não deve ser um exercício solitário, individualista ou desvinculado da realidade concreta. A leitura bíblica precisa acontecer de forma comunitária, em diálogo com a vida, com a história e com os sinais dos tempos. Trata-se de uma escuta plural, atenta à voz do Espírito que sopra entre o povo, especialmente entre os empobrecidos e marginalizados. É uma leitura contextualizada, que lança uma nova lente sobre os textos sagrados, contrapondo-se frontalmente às leituras fundamentalistas que, ao longo da história da Igreja, insistiram em interpretar o texto ao pé da letra, sem o necessário aprofundamento e diálogo com a realidade.

Como nos adverte o apóstolo Paulo: “A letra mata, mas o Espírito vivifica” (2Cor 3,6). A rigidez de uma leitura literalista foi, muitas vezes, o combustível para a perseguição e o assassinato de profetas, como ocorreu com Estevão, apedrejado com base em uma interpretação legalista e violenta da Lei. O fundamentalismo, ao negar o contexto, a historicidade e a complexidade da Palavra, torna-se instrumento de exclusão, opressão e morte. Ao contrário, o Evangelho de Jesus é anúncio de vida — e vida em abundância (Jo 10,10).

A verdadeira interpretação da Bíblia deve acontecer em comunidade porque o Espírito Santo, que ilumina o entendimento das Escrituras, age de forma coletiva. Não há nada pronto, acabado ou dogmatizado de forma autoritária. Pelo contrário, todos e todas são convidados a participar da partilha da Palavra, numa hermenêutica comunitária que se liberta das amarras colonizadoras, das leituras impositivas e hierárquicas que não dialogam, não escutam e não se deixam interpelar pela vida.

A leitura bíblica precisa partir da vida concreta do povo, de suas lutas, dores, esperanças e resistências. Trata-se de um processo que ultrapassa os limites da teologia acadêmica, da filosofia ou da análise exegética, ainda que estas possam oferecer importantes contribuições. O ponto de partida, no entanto, é a realidade do povo pobre e oprimido. É a partir de sua experiência que se constrói uma leitura popular da Bíblia — simples, profunda e profética — livre dos artifícios teóricos e das fórmulas rígidas das teologias europeias e estadunidenses, muitas vezes distantes das realidades do Sul global.

Ler a Bíblia com o povo, de forma popular, é um ato político e espiritual que nos ajuda a compreender o projeto libertador de Deus para a humanidade. É um exercício de escuta — escuta da Palavra e escuta da vida. É uma prática comunitária que fortalece a caminhada com os pobres e sustenta o compromisso com a justiça, a dignidade e a libertação. A missão profética hoje passa por compreender o projeto de Deus a partir da vida e prática de Jesus de Nazaré, que caminhou ao lado dos excluídos, rompeu barreiras e denunciou as estruturas opressoras de seu tempo.

Descobrir o que está por trás da Palavra é um processo exigente, que requer paciência, compromisso e espiritualidade. Como ensina Frei Carlos Mesters, “a Palavra de Deus não é como a semente da alface, que logo germina, mas como a do juazeiro, que leva muito tempo para produzir frutos”. A leitura bíblica exige a mesma atitude de um agricultor que cultiva a terra com cuidado e espera com esperança a colheita. É preciso oração, abertura ao Espírito e escuta sensível à voz dos pobres, pois Deus continua a falar através da história concreta dos que sofrem.

Como bem resume a espiritualidade da Leitura Popular da Bíblia: um pé no chão e outro na Bíblia. Isto é, vida e Palavra entrelaçadas. Escutar Deus em comunidade é, portanto, um ato de resistência, de fé e de esperança ativa. É caminhar com os olhos fixos em Jesus e os ouvidos atentos ao clamor do povo.



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