Marcos Aurélio dos Santos
Ao longo da história, os cristãos sempre confessaram que Jesus Cristo é o Salvador. Mas qual é, de fato, o conteúdo desta confissão de fé?
Ainda que as palavras se repitam ao longo dos séculos, a carga semântica atribuída a elas não permaneceu inalterada. Houve períodos extensos em que, em nome da salvação e de Jesus como Salvador, os cristãos foram educados na passividade diante de uma ordem social evidentemente injusta. A fé cristã, em tais contextos, foi convertida em força conservadora, legitimadora de realidades sociais opressivas. Pior ainda, desde o Renascimento até tempos recentes, os movimentos progressistas e revolucionários frequentemente encontraram na Igreja uma adversária — aliada às forças de conservação, reação e até repressão. O mundo moderno, nesse sentido, desenvolveu-se apesar da Igreja, e não com ela.
Essa crítica, apresentada no capítulo 7 do livro Teologia para o homem crítico, do teólogo italiano Giuseppe Staccone (Editora Vozes, 1986), convida-nos a repensar profundamente o conceito tradicional e fundamentalista de salvação. Essa concepção, reduzida muitas vezes à “salvação de almas”, revela-se alienante e dicotômica, desconsiderando a integralidade da existência humana. Reduzir o Evangelho a uma promessa de salvação pós-morte é despojá-lo de sua potência transformadora para o presente histórico.
Impõe-se, portanto, um olhar histórico-crítico sobre a Bíblia e sobre a confissão de fé cristã, a fim de desconstruir a dicotomia entre salvação eterna e compromisso com a justiça. É preciso resgatar a centralidade da missão libertadora de Jesus, que não se restringiu ao âmbito espiritual, mas envolveu uma profunda ação concreta em prol dos marginalizados de seu tempo.
Não há Evangelho autêntico sem o engajamento da Igreja na opção preferencial pelos pobres. Esta não é uma escolha opcional, mas uma exigência do seguimento de Cristo, cuja vida e ministério foram marcados pela solidariedade radical com os excluídos. O Novo Testamento oferece ampla base para essa afirmação. Jesus inicia seu ministério público proclamando sua missão em termos inequívocos:
"O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me ungiu para anunciar boas novas aos pobres. Enviou-me para proclamar libertação aos cativos, recuperação da vista aos cegos, para pôr em liberdade os oprimidos" (Lucas 4:18).
Essa declaração de propósito não aponta para uma salvação meramente espiritual, mas para uma libertação integral — pessoal e estrutural. A salvação cristã envolve a denúncia das estruturas de dominação e a ação concreta na transformação da realidade. A fé cristã, portanto, deve ser capaz de enxergar não apenas o "céu", mas também o "aqui e agora", com todas as suas implicações sociais, econômicas, políticas e culturais. No contexto latino-americano, marcado por profundas desigualdades sociais, essa perspectiva se torna ainda mais urgente e inadiável.
Como Staccone denuncia, a Igreja na América Latina muitas vezes se omitiu de sua vocação profética, preferindo o silêncio diante das injustiças. Em vez de servir ao povo por meio de um engajamento político nas lutas populares, associou-se ao fundamentalismo religioso e às forças conservadoras, tornando-se cúmplice de projetos neoliberais que têm desumanizado e privado os pobres de dignidade e esperança.
Contudo, há sinais de esperança. Nas últimas décadas, têm emergido novas teologias progressistas que propõem uma releitura crítica da Bíblia e da fé cristã à luz dos desafios contemporâneos. São teologias da práxis, encarnadas na realidade dos povos, comprometidas com a transformação social a partir do Evangelho de Jesus de Nazaré. Essas correntes teológicas recuperam a dimensão profética da Igreja e apontam para um novo horizonte de fé, mais fiel ao Cristo dos pobres e mais relevante para um mundo marcado pela injustiça e desigualdade.
A Igreja é desafiada a reencontrar seu lugar ao lado dos oprimidos, a resgatar a profecia e a comprometer-se com um amor libertador em nome do Evangelho. Como afirmou o profeta latino-americano Dom Pedro Casaldáliga:
“Se a Igreja se esquece da opção pelos pobres, esqueceu o Evangelho.
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