Fé, Política e Violência Urbana


Marcos Aurélio dos Santos 

Em uma conversa com moradores da comunidade de Jardim Progresso, situada na periferia da Zona Norte de Natal, atentei meus ouvidos às narrativas que expressam o estado alarmante da violência que assola a região. Dona Socorro, trabalhadora doméstica que sai para o trabalho às 4h30 da madrugada, utilizando quatro ônibus lotados por dia, chegou atrasada naquela manhã — um fato raro, visto que é conhecida por sua pontualidade. O motivo do atraso foi aterrador: ao se dirigir à parada de ônibus, deparou-se com dois homens armados, aparentemente à espera de uma vítima para execução sumária. A cena se desenrolou nas imediações do Espaço Comunitário local, situado em uma área marcada por uma trajetória de violência: assaltos à mão armada, furtos, estupros e homicídios. As vítimas, em sua maioria, são pessoas negras e pobres.

Duas pesquisas corroboram a gravidade da situação vivenciada pela comunidade de Jardim Progresso. Segundo o Atlas da Violência 2017, de cada 100 pessoas assassinadas no Brasil, 71 são negras. Em consonância com esse dado, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) revela um dado ainda mais alarmante no contexto potiguar: entre os anos de 2005 e 2015, houve um aumento de 331,8% nas mortes de pessoas negras e pobres no Rio Grande do Norte. Esses números revelam que a maioria dos mais de mil assassinatos ocorridos no estado, em apenas cinco meses, vitimaram predominantemente jovens negros das periferias. Frente a esse cenário, cabe ao Estado a responsabilidade de promover políticas públicas eficazes para reduzir esses índices escandalosos. No entanto, até o presente momento, tal compromisso não foi honrado. A violência e a morte seguem em escalada constante.

Do ponto de vista da fé cristã evangélica, emerge uma dimensão fundamental diante desse quadro: a fé política. Trata-se de uma fé que se recusa a ser aprisionada por perspectivas reducionistas, que relegam à eternidade celestial todas as esperanças, ignorando a urgência da justiça no aqui e agora. Necessitamos de uma fé politizada — não no sentido da partidarização, mas como uma consciência crítica, ativa e transformadora, que compreenda o Evangelho como Boa Nova também para o contexto histórico, social e político. Essa fé não é fruto de uma doutrinação sistemática submetida a dogmas, mas é viva, enraizada na realidade concreta e desafiada a dialogar com os dramas do mundo contemporâneo.

Recordo-me de uma cena marcante ocorrida durante uma de nossas oficinas no Espaço Comunitário, a qual deixou perplexos alguns irmãos e irmãs da comunidade. Naquela manhã, Gabriel, um menino negro e pobre de apenas seis anos, aproximou-se de mim com um brinquedo de montar. Ele havia montado uma metralhadora e, correndo, começou a gritar: “Mão na cabeça! Mão na cabeça! Deita... Deita!” Surpreso, perguntei-lhe: “Gabriel, onde você viu essa cena?” E ele respondeu, com a naturalidade brutal da infância violada: “Foi com meu pai! Ele foi preso e está na penitenciária.” Este testemunho foi presenciado por diversas pessoas presentes.

A realidade de Gabriel é compartilhada por muitas outras crianças nas periferias de nossa cidade. Ele tem cinco irmãos pequenos, com idades entre dois e dez anos, e vive em um contexto marcado por pobreza, ausência de políticas públicas e violência estrutural. Esse cenário nos desafia a buscar respostas concretas, que superem práticas assistencialistas e pontuais. Precisamos ir além da simples oferta de pão: é necessário perguntar por que há tanta miséria que gera violência, sofrimento e morte, enquanto uma minoria abastada desfruta do conforto dos bairros privilegiados de Natal.

A resposta não pode se restringir a uma visão teológica espiritualista do pecado pessoal, nem a manifestações sobrenaturais espetaculares promovidas por movimentos religiosos midiáticos. A raiz do problema é estrutural, e o mal se encontra institucionalizado nas engrenagens do poder opressor. Por isso, essa questão exige de nós, cristãos e cristãs, um engajamento político responsável e uma voz profética que denuncie as iniquidades do sistema. Devemos trilhar o caminho a partir da Galileia de hoje — as periferias urbanas — onde se concentram as contradições mais agudas da sociedade. Somos chamados a denunciar a opressão, a pobreza, a violência racial, a desigualdade social, e a lutar por uma sociedade fundada na justiça, na equidade e na partilha dos bens comuns.

É urgente construirmos uma espiritualidade encarnada, comprometida com o Reino de Deus, onde prevaleça o amor libertador, a justiça restauradora e a solidariedade como princípio ético e político de nossa fé.


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