A Prática da Justiça e a Superação da Opressão


Marcos Aurélio dos Santos 

A prática do amor libertário deve estar nas entranhas dos seguidores de Jesus de Nazaré. A espiritualidade cristã não está dissociada da prática da justiça; não há dicotomia entre fé e compromisso social. Pelo contrário, é a consciência da justiça do Reino que nos impulsiona ao encontro dos pobres, excluídos, explorados e marginalizados pela sociedade. A justiça de Deus em favor dos oprimidos possui sólida fundamentação bíblica. Ela se revela nas narrativas históricas das Escrituras, na vida das pessoas, nas ações e falas subversivas dos profetas e profetisas que, guiados pelo Deus dos oprimidos, fizeram uma opção radical pelos pobres ao denunciar as injustiças do seu tempo.

Seriam necessárias milhares de linhas para descrever, em profundidade, a opção profética pelos pobres nas Escrituras. Ainda que não caibam todos os relatos neste artigo, é essencial reconhecer que tal opção ultrapassa a mera prática do assistencialismo. Trata-se de uma escolha que aponta para uma dimensão mais ampla e profunda da espiritualidade bíblica. Para os profetas e profetisas, a pobreza, a fome e a miséria que assolavam suas comunidades eram consequências diretas da opressão praticada por aqueles que concentravam riqueza e poder, gerando desigualdade econômica e social.

O profeta Amós, por exemplo, denuncia com veemência os abusos dos poderosos de sua época:

“Portanto, visto que pisais o pobre e dele exigis um tributo de trigo, edificastes casas de pedras lavradas, mas nelas não habitareis; vinhas desejáveis plantastes, mas não bebereis do seu vinho. Porque sei que são muitas as vossas transgressões e graves os vossos pecados: afligis o justo, tomais suborno e rejeitais os necessitados à porta” (Amós 5:11-12).

A opressão aos pobres tem origem identificável: parte das elites que, por meio de estruturas de exploração, mantêm seus privilégios. Como descreve Amós, tratava-se de uma classe que habitava em casas luxuosas, construídas com pedras lavradas, cercadas por vinhas exuberantes — símbolos da riqueza acumulada. Pisar os pobres significava, em termos concretos, impor-lhes tributos abusivos, negar-lhes acesso à terra, excluí-los da partilha dos lucros e forçá-los ao trabalho extenuante por salários miseráveis. A opressão, assim, era um projeto calculado de manutenção da pobreza e, consequentemente, do poder.

Entre as inúmeras passagens bíblicas que abordam a justiça e a opção pelos pobres, destaca-se a fala do profeta Jeremias:

“Ele defendeu a causa do pobre e do necessitado, e assim tudo corria bem. Não é isso que significa conhecer-me? — declara o Senhor” (Jeremias 22:16).

Essa declaração é profunda e provocativa. Ela revela que o verdadeiro conhecimento de Deus está intrinsecamente ligado à defesa da causa dos pobres. Conhecer a Deus não é meramente aderir a doutrinas ou dominar discursos teológicos, mas sim caminhar com os pobres, ver Deus no rosto do oprimido e cultivar uma espiritualidade que se materializa em práticas libertadoras.

Portanto, esse conhecimento de Deus não é teológico-científico ou doutrinário no sentido convencional. Trata-se de uma experiência relacional e transformadora, que nos humaniza, nos ensina a amar e a valorizar a dignidade do outro. Essa espiritualidade rompe com o individualismo e se transforma em uma vivência comunitária, fraterna, misericordiosa e libertadora, que inclui todos e todas. Lutar ao lado dos pobres por seus direitos é, de fato, abrir a cortina do sagrado e vislumbrar o Deus da justiça e da misericórdia.

Infelizmente, ainda estamos muitas vezes limitados a ações pontuais de caridade, restritas ao “dar o pão”. De fato, alimentar os famintos, cuidar dos doentes, abrigar os sem-teto são gestos necessários em contextos emergenciais. No entanto, tais ações, por si só, não constituem uma espiritualidade profética. O sistema capitalista também pratica filantropia, muitas vezes como estratégia de marketing ou investimento social que busca retorno lucrativo. Do mesmo modo, setores religiosos adotam práticas assistencialistas como obrigação moral ou para destacar-se como “benfeitores”, esvaziando o sentido profético da solidariedade.

Na espiritualidade cristã, faz-se urgente o resgate da profecia: denunciar toda forma de riqueza que oprime e empobrece, afirmar a dignidade dos pobres e acreditar em sua força, criatividade e potencial de superação. A missão da Igreja, nesse contexto, é contribuir para que os pobres não sejam apenas objeto de caridade, mas sujeitos de sua própria libertação.

Essa espiritualidade, firmada na justiça e no amor libertador, é aquela que, segundo Jeremias, revela o verdadeiro conhecimento de Deus. É uma espiritualidade integral, crítica e engajada, que denuncia as injustiças estruturais e anuncia o Reino de Deus — um Reino onde habita a justiça, a paz e a comunhão com os que mais sofrem.



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